Todos os dias próprio e diferente. Hoje as nuvens formam uma cadeia de montanhas de um azul indefinido pouco acima do morro. A cadeia prolonga-se para o mar deixando atrás o morro, tem limites mal definidos, numa conjunção de cores desde o roxo até ao amarelo vivo, resto de sol curioso a espreitar ainda a vida. O morro ganhou uma cor castanho-cinzento. A estrela da tarde pisca para a esquerda do sombrero e o morro entra ondulante nas águas escuras já, plúmbeas ainda que piscadas, aqui e ali, por pingas de cores variadas próprias do fim dos dias.
A esplanada faz tocar finalmente uma música ondulante, uma cúmbia antiga em vozes altas. As vozes das pessoas aproXimam-se e afastam-se como náufragos no fundo sonoro das ondas roxas espraiando-se mais abaixo. Levanto os olhos: a mesma variedade de caras mais e menos tisnadas, uns empertigados, outros arrogantes, umas sorridentes, outras equivocadas, muita exibição, muita hesitação, faces a perder e a ganhar o gosto pela vida. Levanto mais a vista. Escurece definitivamente. O som vinha afinal do ecrã gigante. Era um vídeo musical de um grupo africano. Aliás angolano: agora cantam em quimbundo, agitam-se manifestando uma energia extraordinária mesmo para o ritmo da música; saltam no estúdio, numa postura mal disfarçando a sua artificialidade, depois aparecem fardados de nativos num terreiro do mato a dançar com uma grande harmonia e equilíbrio. Passa um carro a fazer barulhos de aço e ácido e rasga-nos o pensamento. Uma mulher fala mesmo atrás de mim com voz brutal, muito alto, como se a dirigisse a alguém do outro lado do Saara. Bate em alguém com a voz, embora não diga nada lexicalmente agressivo. Respondem-lhe baixinho e ela zanga-se: fala com vida, porra! O cantor continua indiferente a mostrar-se enleado com a sua própria música. Pirim, pilim... Ri de nada, não pára de mexer-se continuamente virado para a câmara com os dentes muito brancos para cumprir o estereótipo. Um mosquito impertinente não me larga. Um amigo interrompe-me. Sorrio placidamente como se tivesse fumado 500 kg de maconha na última semana. Fecho o caderno. Penso na falta que me faz a máquina fotográfica. Mas que cara de imbecil! A música é um semba agora, com a voz rouca de um cantor antigo. Olho uma última vez o céu. Fechou-se. O cantor cala-se. Fica no ar um coro fresco, leve, circular, de mulheres de voz suave e meiga. Depois calam-se também. Ouço um batuque e um acórdeon. Nyõ! Seria o quê? Tchau. O mosquito acaba de morder-me.
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