O cérebro é a parte do corpo que reúne e coordena as perceções e, portanto, resolve, decide. Pela sua atividade extraordinária percebemos que existe alguém de onde vêm tantas sensações e um «eu» que as trabalha, toma decisões, age ou manda agir. É claro que registamos recorrências e, pelos registos familiares, pessoais, culturais, somos levados a formar uma ideia geralmente fixa de nós próprios: existe uma pessoa que é 'assim', tem certos contornos, comporta-se de certa maneira, tal como tem o nariz torto ou comprido, com semelhanças com o de outros membros da família. Apegamo-nos a isso como se precisássemos de uma tábua de salvação, como se estivéssemos para naufragar. E não estamos. Estamos apenas a ver-nos, a apercebermo-nos e a conferir com registos anteriores que nos atribuem e nos atribuímos antes. E continuamos processando. Aí não há espírito, sopro divino, que se perceba, é o corpo no mundo agindo, coordenando-se, providenciando o necessário para continuar a agir. O que nos toca sem nos apercebermos, de que damos conta só depois e como reminiscência de uma fímbria de nuvem longínqua, não sei que imagem seria apropriada, penso que nenhuma, o que nos tocou sem percebermos e talvez acompanhe toda a extraordinária atividade do corpo com seu cérebro, isso é que, não tendo nome que lhe possamos atribuir, isso é que é transcendente.
Nesta perspetiva, a imagem que temos de nós próprios, para ser autêntica, é dinâmica, vai se transformando constantemente. Não existe uma coisa chamada «eu», uma carapaça, máscara, perfil, ao qual adequamos decisões. Aliás, segundo a neurobiologia vem descobrindo, o cérebro decide antes de pensarmos que tomámos uma decisão. Tomamos é, depois, consciência de que esse organismo que nós somos decidiu e chamamos a isso tomarmos uma decisão 'sobre o assunto'.
Perante o que não faz qualquer sentido qualquer atuação que se baseie em uma identidade fixa, de contornos específicos ou diacríticos, definidos e inamovíveis, ou minimamente, ou fragmentariamente, modificáveis, sem os quais a gente é como se deixasse de existir, os quais nos foram legados assim, em pacote embrulhado, por sagrados antes passados. Os registos necessários estão na memória viva, não fazem falta para construir muros, porque não são necessários muros (eficazes também não são). Os registos reativam-se, reavivam-se e transformam-se em função da utilidade imediata e da prevenção percebida como necessária. Não precisamos deles como de uma fortaleza contra os invasores. Precisamos é de estar atentos e de nos reinventarmos em função do que percebemos, com a devida e suposta assistência de um espírito impercetível - ou quase - que é também amor, porque não agride nem invade, coliga-se.