Acabada a leitura da ficção narrativa de Arménio Vieira intitulada No inferno. Uma leitura estimulante, atual e despretensiosa. Com fina ironia, o autor compõe a alegoria impiedosa do escritor de hoje – e esses dois traços (alegoria, ironia), voltados para o escritor contemporâneo, vinham já de O eleito do sol.
Durante a maior parte deste livro ele imagina um homem fechado numa boa residência, com tudo à mão, só não podendo sair enquanto não escrever um romance excelente. Como hoje os escritores estão fechados nos seus escritórios, com toda a literatura em rede a um toque do teclado, assim aquele, fiel ao compromisso com o editor. Hoje o escritor é aquele que, através do computador, tem acesso (no mínimo) ao conjunto de todos autores, ou obras, canónicos e globalizados. É como se, de repente, a sua memória visualizasse toda a literatura mais ou menos conhecida no mundo (essa é das imagens do livro).
Uma das ironias está no facto de o protagonista não conseguir escrever um romance apesar disso – talvez mesmo por causa disso. Arménio Vieira também não chega a escrever um romance. Ele ironiza e faz aquilo que ironiza, globalizando assim a sua narrativa apesar do gozo com que parece retratar a globalização literária. Goza com ela e demonstra possuí-la. Daí um dos muitos interesses da obra, o das intertextualizações a que obedece insinuando a loucura livresca do protagonista.
Ao mesmo tempo o escritor demonstra assim os conhecimentos alargados que possui e que a alusão, a elipse, pouco mais, é o que resta do arsenal da retórica literária para o escritor de hoje, artista de colagens e de insinuações em rede. A partir de um certo momento, já mais perto do fim, o rigor da construção narrativa desfaz-se também, com os sonhos loucos da personagem, e a trama ludibria a expectativa que tinha criado em nós, confirmando que tudo é um ludíbrio na literatura, particularmente na atual. Mas ele entra no ludíbrio e constrói uma obra de interesse para qualquer leitor médio no mundo, interagindo com as principais obras, teorias e autores cuja banalização desconstrói.
Por isto e muito mais é um livro indispensável, original e estimulante no panorama das literaturas africanas lusófonas e em qualquer outro. Um dos seus principais trunfos reside precisamente no afastamento da tacanhez, do preconceito, da redução ao umbigo, dos ditames estéticos programados. Um livro livre de um homem livre, muito bem escrito, muito bem imaginado.