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Átomos estéticos são também cognitivos

  “Quando vemos algo além de nossas expectativas, pedaços locais de tecido cerebral geram pequenos ‘átomos’ de afeto positivo. A combinação ...

09/11/2009

nicolau saião viu o seu demónio

ATÉ AO FIM

Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio

estava deitado

A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem

Dorme justamente como um anjo.

A janela pouco cerrada e o sofá chegado

à plena luz

A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se

Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical.

Congeminei

Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara

por uma tasca ou que

aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho

Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta

fraternidade bebedora.

Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto

uma vaga felicidade

Dizendo melhor uma centelha de contentamento

ou alegria, ou

assim como que a sensação de quem vira o mundo

no seu lugar real

Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava

Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário

Cheirava um pouco a flores e vagamente

a desodorizante

Um livro tombara no chão, ficara à espera

aberto anquilosado

Quando abri a porta da cozinha vi sobre

o fogão um tacho com

Uma iguaria qualquer com que se entretivera

certamente antes de cair no leito vencido

talvez pelas canseiras das últimas horas.

Se minha mãe estivesse viva decerto

lhe teria aplicado um raspanete

Uma expressão em dialecto se calhar

um tabefe levezinho. O meu pai

Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade

Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta

Contos do dia e da noite, o irresistível

fascínio do desconhecido.

Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha

Revirava-se-me na cabeça.

Quando olhei pela janela o horizonte

pareceu-me uma linha ténue.

Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes

por entre dentes eu diria talvez

coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória

Sibilina dos sobreviventes imutáveis.

bp mps

alda lara testamento


À prostituta mais nova 

Do bairro mais velho e escuro, 
Deixo os meus brincos, lavrados 
Em cristal límpido e puro...

E àquela virgem esquecida, 
Rapariga sem ternura, 
Sonhando algures uma lenda, 
Deixo o meu vestido branco, 
O meu vestido de noiva, 
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo 
Ofereço-o àquele amigo 
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus 
Das contas de outro sofrer, 
São para os homens humildes 
Que nunca souberam ler. 
Quanto aos meus poemas loucos, 
Esses, que são de dor 
Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança 
Desesperada mas firme, 
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora, 
Em que a minha alma venha 
Beijar de longe os teus olhos, 
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

08/11/2009

lobito restinga prémio nacional de sobrevivência

prémios nacionais direitos humanos

Ultimamente vivemos dias de prémios. Saíram finalmente os de Cultura e Artes, pelos quais houve uma espera documental de cerca de 15 dias, mas que tiveram o mérito de acentuar a descentralização das atribuições. Foram também descentralizados os prémios nacionais dos direitos humanos, concedidos a duas pessoas e uma entidade: o jornalista do Folha 8, Domingos da Cruz, pela persistência na defesa pública dos direitos do cidadão; o ativista Luís Araújo, que se tem destacado na defesa dos direitos dos desalojados em consequência das reabilitações urbanas, com a ONG SOS-Habitat, que coordena; a ONG OMUNGA de Benguela, que tem estado sempre ativa na promoção de uma consciência crítica e cívica sem a qual, obviamente, não há exercício do principal desses direitos: o de abrir os olhos para ver. O júri foi presidido por Marcolino Moco, ex-primeiro ministro angolano e atualmente professor universitário. Parabéns a todos, claro.

joão melo parabéns

João Melo ganhou o prémio nacional de cultura e artes na categoria de literatura. Creio que o prémio se justifica pelo conjunto da sua obra, pela intervenção pública (ainda recentemente, por exemplo, defendeu um tratamento jornalístico mais equitativo), não só pela literatura. É, de qualquer modo, um dos nossos melhores cronistas e um poeta que atinge a excelência na lírica amorosa, sensual, forte, convivial. Daqui os modestos mas soantes parabéns. Como também a Carlos Burity, outro premiado cujo trabalho conheço bem, o intérprete de Ginginda, Carolina, Massemba e outras músicas que desde há muitos anos aprecio. Quanto a Carlos Serrano, que há muitos anos conheci também, na contingência dos congressos e encontros científicos, ainda não li o seu trabalho, que julgo ser fruto de anos de investigação.

05/11/2009

pedra redonda

portanto,

espiral descendente com luz ao fundo

claude lévi-strauss sobre criatividade

Nada como um estruturalista para se lhe arrancar uma confissão sobre criatividade. Arriscaria dizer que, em termos lévi-straussianos, a criatividade estalaria pelo menos de dois modos: um modo em 'hiato interno', a subtil desregulação que vai entre estrutura e superfície narrativa, entre funções relacionais e seu preenchimento colorido pelos frutos e pelos bichos da criação; ao que ele chamava música. E um hiato externo: como resolver a agonia do mundo, como unir no mesmo tabuleiro a morte e a vida, esses dois tabuleiros? Se os mitos vêm do fundo da própria estrutura binária do real (o mito funciona assim porque o cérebro funciona assim, porque o universo funciona assim), então, o caso é grave. O mito será a mais extrema criatividade, não por lidar - a ensaiar solucioná-lo mediante uma lógica heróica e total - com o mais difícil dos problemas, mas por o deixar insolúvel, e surdamente inquietador, no quadro da solução, como a silhueta negra do cão picassiano que assombra as cores esfusiantes dos seus 'Três músicos' (da funérea commedia dell'arte). Comentário de José Manuel Martins