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20/09/2009

arménio vieira no inferno


Acabada a leitura da ficção narrativa de Arménio Vieira intitulada No inferno. Uma leitura estimulante, atual e despretensiosa. Com fina ironia, o autor compõe a alegoria impiedosa do escritor de hoje – e esses dois traços (alegoria, ironia), voltados para o escritor contemporâneo, vinham já de O eleito do sol

Durante a maior parte deste livro ele imagina um homem fechado numa boa residência, com tudo à mão, só não podendo sair enquanto não escrever um romance excelente. Como hoje os escritores estão fechados nos seus escritórios, com toda a literatura em rede a um toque do teclado, assim aquele, fiel ao compromisso com o editor. Hoje o escritor é aquele que, através do computador, tem acesso (no mínimo) ao conjunto de todos autores, ou obras, canónicos e globalizados. É como se, de repente, a sua memória visualizasse toda a literatura mais ou menos conhecida no mundo (essa é das imagens do livro). 

Uma das ironias está no facto de o protagonista não conseguir escrever um romance apesar disso – talvez mesmo por causa disso. Arménio Vieira também não chega a escrever um romance. Ele ironiza e faz aquilo que ironiza, globalizando assim a sua narrativa apesar do gozo com que parece retratar a globalização literária. Goza com ela e demonstra possuí-la. Daí um dos muitos interesses da obra, o das intertextualizações a que obedece insinuando a loucura livresca do protagonista. 

Ao mesmo tempo o escritor demonstra assim os conhecimentos alargados que possui e que a alusão, a elipse, pouco mais, é o que resta do arsenal da retórica literária para o escritor de hoje, artista de colagens e de insinuações em rede. A partir de um certo momento, já mais perto do fim, o rigor da construção narrativa desfaz-se também, com os sonhos loucos da personagem, e a trama ludibria a expectativa que tinha criado em nós, confirmando que tudo é um ludíbrio na literatura, particularmente na atual. Mas ele entra no ludíbrio e constrói uma obra de interesse para qualquer leitor médio no mundo, interagindo com as principais obras, teorias e autores cuja banalização desconstrói.

Por isto e muito mais é um livro indispensável, original e estimulante no panorama das literaturas africanas lusófonas e em qualquer outro. Um dos seus principais trunfos reside precisamente no afastamento da tacanhez, do preconceito, da redução ao umbigo, dos ditames estéticos programados. Um livro livre de um homem livre, muito bem escrito, muito bem imaginado.

colagem e reflexo - luanda



fernando costa andrade


Morreu o poeta e artista plástico nacionalista (angolano) Fernando Costa Andrade (já agora, é mesmo só Fernando Costa Andrade e não Francisco Fernando como dizem quase todos na esteira de Manuel Ferreira; o próprio autor chamava constantemente a atenção para isso). Costa Andrade usou muitos pseudónimos (por exemplo Africano Paiva), entre os quais se destaca o de Ndunduma we Lépi (nome de guerra; Ndunduma é nome de um dos últimos e mais obstinados reis resistentes à ocupação colonial no princípio do século XX). Era filho de pai português e mãe angolana. Segundo a nota do bureau político do MPLA, faleceu na 6.ª F.ª passada (dia 18, portanto). Homem coerente com os seus princípios, combateu pela independência literária e política do país, incluindo de armas na mão. Autor de um canto armado, teve no entanto um conhecimento razoável do concretismo paulistano, dos tempos em que esteve por lá, exilado e ativo, em Sampa, São Paulo, Brasil (aí publicou, recordo, o segundo livro: Tempo angolano em Itália). Que a sua alma tenha paz. Vida à poesia: 

A pedra da Emanha
poesia tem-na a pedra o poema um outro eu sou afinal o transporte roda parada no tempo mó rasgada desassossego eis-me pedra sem ser pedra apenas uma fissura coágulo secura



Criança notívaga do Luena

o vento não diz nem o sol atrás do mundo a escuridão não distingue a criança do caminho do mundo pés descalços gémeos no silêncio do mundo nada sabem donde vêm onde vão caminham sós no mundo

(do livro com verso comigo, onde retoma significativamente algumas lições concretistas. Publicado pela Chá de Caxinde, Luanda, 2005; propositadamente, para mostrar o vanguardismo oculto do poeta, retirei a divisão versicular; fica parecido com certos poemas de Abreu Paxe).