Com este título pretensioso pretendo somente comunicar uma observação que pode ser importante se nos fizer pensar um pouco.
Os que estão acostumados com estas questões, tão debatidas por críticos e teóricos das universidades euro-americanas, já foram buscar, a esta altura, à sua memória pessoal, todo o acervo de possíveis perguntas, de conceitos, termos, pressupostos em torno de «interpretação». Porém, desta vez, experimentemos algo de novo. Dispamo-nos disso por momentos para nos descondicionarmos. Eu quero falar da interpretação como sintoma do estado mental ou cultural de uma cidade por exemplo. Acontece em países como Angola (e convém que se fale deles conhecendo bem a sua história), nas suas cidades maiores sobretudo, que as pessoas não conseguem interpretar bem o que leem, por vezes até mesmo o que ouvem.
Uma das variáveis a controlar é, sem dúvida, linguística: língua-mãe do intérprete, sua primeira língua, língua veicular do intérprete, línguas que domina, etc. Agarrada a essa vem outra variável: a cultura. Qual a cultura de berço, qual a cultura por assim dizer veicular, etc. Então a resposta para o problema da interpretação, geralmente articulada com qualquer forma plástica de deconstrucionismo, é a de que a interferência da cultura 'ocidental' – e da língua que lhe anda associada – afeta o desempenho interpretativo das pessoas. O que venho postular é a possibilidade de isso não corresponder à situação real.
As culturas tradicionais e orais envolventes das maiores cidades angolanas alicerçam parte muito significativa da formação dos seus jovens em exercícios de sagacidade e analogia. Por isso recorrem aos provérbios, às adivinhas, às alegorias (nos contos), depois aos poemas cantados. Isso implica desenvolver precisamente a capacidade interpretativa. O que se passou com as populações urbanas – e mesmo com a maioria dos que vieram do 'mato' – foi uma rutura relativamente à formação tradicional. A par dessa rutura, não se deu a aquisição completa de uma nova cultura urbana e mais voltada para a escrita. De maneira que nos encontramos um 'estado mental' ou cultural atípico, voltado para soluções imediatas em resposta a problemas miúdos do dia-a-dia, em que tudo o resto é posto em suspenso. Neste momento de transição não se chega ainda a constituir uma nova síntese, pessoal ou coletiva, pensa-se e vive-se num hiato cultural e mental. Para superá-lo é preciso um grande esforço pessoal, sem dúvida, e evitar os dois maiores perigos: um, o mito do retorno ao passado; o outro, o mito da assimilação completa às sociedades mais desenvolvidas, mais aperfeiçoadas tecnicamente (e a técnica não anda sozinha). O mito do retorno ao passado foi já experimentado, por exemplo pelos românticos europeus para enfrentar a revolução industrial e outras, pelos brasileiros para enfrentar em parte os mesmos desafios globalizantes e os da independência recém-adquirida (refiro-me ao indianismo, claro). Apenas se criou mais uma artificialidade e mais uma tensão. Por tal motivo esses caminhos foram abandonados. A síntese inevitável dos mundos em rutura deu-se naturalmente a à margem dessas programações ideológicas e intelectuais. Felizmente também.
De maneira que o problema da interpretação nos coloca perante um problema mais vasto, se não mesmo mais sério. Que é o da ausência de referentes. O intérprete comum precisa de referentes, mas de referentes que possam guiá-lo no dia-a-dia. Os abstratos ficam para nós, académicos e pensadores. O que temos então de encontrar são exercícios que treinem de novo a destreza, sagacidade, capacidade analógica dos povos urbanizados em novos contextos e de tal forma que possam enfrentar, a partir daí, qualquer novo contexto. Para fazê-lo de forma prática, 'exata', 'neutra' (ou seja: que não provoque suscetibilidades nem caia em mera abstração), só temos uma 'arma' nas mãos: levar as pessoas a ver como os pequenos textos do quotidiano (frases, 'dizeres', 'bocas', alusões, brincadeiras de olhos verbais) como esses pequenos textos funcionam e, por consequência, mostrar que os interpretamos e como somos capazes de interpretá-los. Nesses quotidianos a interpretação, quando queremos, funciona (quando não queremos agarramo-nos propositadamente a referências que o outro não domina e, portanto, falsificamos a comunicação). Aí continuamos a fazer escolhas racionais e instrumentais que no entanto sustentam interpretações (v. Elster e a teoria das escolhas racionais). Ou seja: o problema da interpretação não existe aí, o que existe é um problema de deslocação dessa capacidade do quotidiano para o texto. As grandes dualidades abstratas e geométricas em que o deconstrucionismo cinicamente se baseia não resolvem esse problema. Que é do domínio da explicação (veja-se essa etimologia e depois continuamos. Agora tenho que ir dar uma aula).
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