Desde o início dos anos 80 que comecei a ouvir falar no 'neo-conservadorismo' americano, a partir de uns artigos de Nuno Rogeiro publicados em Portugal. Sempre me interessou, embora tenha divergências, como é natural entre pessoas que pensam por si próprias. O que me tornava afim deles era o desmontar dos mitos da esquerda triunfante dos anos 50 a 70, cheia de ideias feitas, preconceitos, futilidades e folclore erigidos em ciência política e políticas sábias, próximas do 'povo'. A diferença vinha sobretudo de eu não ser conservador. Compreendo o conservadorismo como co-natural à humanidade e acho mesmo que, no sentido lato que é dado à palavra, os angolanos foram sempre tendencialmente conservadores. Por essas e outras não me pareceu nunca viável aquela revolução pregada aqui depois da independência - nem nenhuma outra. Também não sou reformista. Acho que a dialética entre conservação, ruptura e revolução (ou reforma) é que, no seu conjunto, coincidem com o ser humano. E vivo assim, nessa dialética. De maneira que, em função dos contextos, posso colocar-me em qualquer dos três polos - sem nunca perder de vista os outros dois.
Uma das figuras de proa do neoconservadorismo norte-americano foi Irving Kristol, de origem judaica pobre que foi subindo, inicialmente, entre judeus, dentro dos grupos de interesses dos judeus incluindo (sobretudo) ricos. A sua ascensão social e, sobretudo, a origem humilde assumida sem complexos, tornou-o sensato e fez com que evitasse continuamente mitos e idiotices de uma esquerda mimada, de filhinhos de papai que acham que tudo se resolve com afagos, migalhas bem doseadas, fraternidades cínicas e falinhas mansas - para os pobres, claro. Na feira do livro organizada em Luanda pela Chá de Caxinde encontrei o livro Neoconservadorismo: autobiografia de uma ideia a um preço razoável: 1000 kwanzas. O primeiro capítulo é de facto a autobiografia de Kristol. Interessantíssima a vários níveis e esclarecedora para quem fala desse 'movimento' da filosofia política norte-americana sem o conhecer bem.
Um gosto amargo me fica sempre que leio estas autobiografias intelectuais, por assim dizer, como a de Popper: aquelas pessoas liam, comentavam, justificavam de forma clara e assumida as suas opções, discutiam com os amigos e inimigos as suas divergências de forma fundada e aberta, sendo que, muitas vezes, desse jogo-debate de argumentos e contra-argumentos nasciam filosofias políticas e teorias científicas que nos marcaram a todos. Julgo que a isso se deve (em boa parte mas não só) o crescimento intelectual da Alemanha, da Inglaterra, dos EUA no século XX, século da decadência da cultura e da filosofia francófonas - particularmente na sua segunda metade.
Lembro-me de que ainda há pouco mais de um ano coloquei algumas perguntas bem fundadas e sem dúvida incómodas a um pensador político português, homem bem situado e conceituado à esquerda, defensor aparentemente da liberdade de discussão e da abertura a opiniões, filosofias e teorias criadas fora do 'primeiro mundo' e em função do choque entre o pensamento existente e as realidades locais. A reação do ilustre pensador foi a mesma que geralmente encontro na vida intelectual portuguesa, brasileira, angolana: sentiu-se picado, provocado, ainda hesitou um bocado porque terá percebido que havia conteúdo no que eu dizia, mas logo a seguir o sentimento de ser ultrajado por ter sido desafiado predominou e disparou num discurso inflado contra os seus fantasmas políticos, pelos vistos representados ali por mim.
Lembro-me também de em Moçambique ter dito, numa conferência, que não produzimos pensamento próprio e que isso era o nosso maior problema, não produzirmos pensamento, filosofia, teoria, não apresentarmos métodos e hipóteses de alcance global que discutam em pé de igualdade (mas por eficiência dos seus raciocínios) com as outras, em pé de igualdade ou em vantagem, porque uma teoria que não apresente vantagens não deve ser apresentada em lado nenhum. A reação foi de silêncio total. Um norte-americano (por acaso ligado ao Partido Republicano) ficou muito corado e parece ter desaprovado. Algumas pessoas que não conheço olharam-me com olhar de reprovação. O resto nem terá percebido 'onde é que eu queria chegar'.
Lembro-me ainda de um outro caso paradigmático: ao fim de uma conferência de interpretação crítica de uma obra muito conhecida permiti-me discordar e explicar porquê, não baseando-me em pormenores mas no ponto de partida que, logicamente, condicionava todo o resto da exposição - uma exposição coerente a partir desse ponto. Creio que, de uma forma geral, as pessoas me deram razão mas isso não era importante ali. Significativo foi que, durante mais de um ano, a colega não me dirigiu a palavra e, no início, ficava com a face vermelha quando me via.
A substituição da discussão de ideias pelos sentimentos de afronta (quando nos apresentam opinião contrária) e eliminação da afronta (quando respondemos) silenciando o adversário são a causa do nosso atraso intelectual e científico. Raramente encontramos alguém com quem consigamos falar expondo opiniões divergentes num diálogo em que a insistência implica proficuidade, apuramento nos argumentos, aprofundamento obrigatório no estudo para poder responder. O cientista, entre nós, não é propriamente cientista: de forma geral pouco investiga, manda umas 'bocas' e prefere falar de cátedra, em conferências sem diálogo, ou boicotar o diálogo de qualquer outra forma, para não ter quem o desafie. É muito grave desafiar, discordar, e muito perigoso admitir que nos façam isso... na ciência, na crítica literária, no mundo cultural e repito, sabendo de antemão que me vão ter mais raiva ainda certas pessoas, repito, em Angola, no Brasil, em Portugal. Ora, quando a cultura não suporta nem rentabiliza a diferença, não podem os intelectuais estranhar que nas outras esferas da vida social (económica, política, etc) não se respeite nem se aproveite uma verdadeira concorrência. Quando formos capazes de, entre nós, assumirmos claramente e discutirmos fundadamente as nossas divergências, sem ser para chegar a 'uma só voz', então veremos que por consequência tal prática se espalhará para outras esferas da vida social. E onde se não espalhar teremos moral para criticar.