Publicação em destaque

Átomos estéticos são também cognitivos

  “Quando vemos algo além de nossas expectativas, pedaços locais de tecido cerebral geram pequenos ‘átomos’ de afeto positivo. A combinação ...

12/06/2008

lobito

Flamingos na restinga

De sotaina branca ondulam sinos

Em brasa na ferrugem dos portos;

Capas de reis cobrem as areias

Fálicas do escolho, da língua

Ventríloqua lambendo o mar;

A crosta queimada pelo sol

Arpoa os bicos estendidos, deuses

vigiando as águas

Esguias como palavras.

11/06/2008

tipografia experimental


Trabalho muito interessante de Jiyeo Song, que se pode consultar em O b v i o u s. Conforme as horas do dia surgem palavras (e frases) diferentes no chão. Fica só uma imagem, que a ligação aqui está cada vez mais lenta (será preparação para as eleições?).

08/06/2008

o fermento

Só, depois da chuva, no silêncio espesso

— Tardias gotas sobre o chão,

Esguias e pássaros coados —

Rescalda a luz dos olhos sobre as casas.

Regresso incógnito e banido

No trágico teatro da coragem

— Lá,

Onde um canto imoral e sem grandeza

Cobre o asfalto indiferente e escasso,

A esbatida cal dos muros baixos,

Maleáveis,

Ignorando que mundo continua

No desbordo curvo das ruas, na viúva

Praia

A fermentar.

jameson benguelense

Uma garrafa de Jameson custa actualmente 1.283 kwanzas num supermercado dos mais caros da cidade. Nos bares o mesmo uíski é, geralmente, vendido a 600 kwanzas a dose, 'por ser irlandês' (excepção feita ao bar e restaurante Tropic: 300 kwanzas a dose). Ou seja: duas doses praticamente pagam a garrafa do supermercado (preço para cliente comum). E ainda te servem, na maioria dos bares, sem medida, um fundinho de copo como dose 'simples' - uma invenção própria de tasqueiros (dose é dose, não há simples nem complicada, serve-se a mesma e cobra-se o mesmo). Alternativa: black e red label carrascão, origem sul-africana, ressaca inigualável. Ainda assim 300 kwanzas a dose, melhor servida.

comércio benguelense 1

É simples: importas tudo o que podes. Tens desconto no país de origem porque, sendo para exportação, não pagas IVA. No entanto sobrecarregas o preço na factura de origem com pelo menos o factor 3 (x3). Os dois que ficam a mais o teu fornecedor passa para a tua conta privada. A mercadoria chega com o preço alto e mostras a factura ao cliente para provares que não estás a roubar. Resultado: os nossos preços. Absurdos. E os produtos nacionais, como as madeiras de Cabinda por exemplo, substituídos por internacionais de menor qualidade. Bonito de se ver. Os maiombolas só querem percentagem, não te rales com isso.

futebol e electricidade

Que os angolanos acompanham muito o futebol português e não só, toda a gente sabe. O que não se sabe é que os maiombolas não gostam de futebol: cada vez que um jogo é muito aguardado a luz falta na cidade a essa hora. As más línguas dizem que são os empresários dos restaurantes e bares combinados com os funcionários da empresa de electricidade. Mas elas não conhecem os maiombolas...

curso de literatura brasileira III

07/06/2008

rené daumal a guerra santa

"...a nossa grande doença é tapar com palavras para não ver" (transcriação de A. Barahona, Lx.ª, Assírio & Alvim, 2002, p. 25) "Olhai a linda paz que me é proposta. Fechar os olhos para não ver o crime" (id., p. 35)

miga banto

Deliciado nestas terras a comer o meu bom funge de galinha, carne seca, ou peixe seco, fui surpreendido por Ladislau Batalha, judeu errante e assumido, socialista, anarquista, ecologista sem o saber como o são os autênticos, que deambulou por estas costas negras uns quatro anos à procura de fortuna após uma falência estúpida em Lisboa. Escreveu umas cartas a um amigo curioso sobre Costumes Angolenses, que se tornaram muito proveitosas ao povo e às escolas. Fico surpreendido porque também ele comia muqueca – de peixe, claro. Sei que não é a brasileira mas a nossa, daqui, onde a banana frita e a batata doce criam no estômago a crosta conveniente às derrotas do vinho tinto carrascão, comprovado que está que o peixe não puxa carroças como se diz em Portugal. Então e não é que o avô Ladislau vem de Lisboa ao mato angolano para encontrar a muqueca feita com peixe do rio e, pasme-se, pão amassado para acompanhar?! Quando era miúdo pensei que a minha avó tinha trazido isso da sua Beira serrana e altiva com seus vinte e poucos anos; já adulto e disperso na lusofonia atlântica, achei que afinal talvez algum ratinho tenha levado a receita do Alentejo para as serranias pobres de pinhais e barrocas deserdadas por Deus e até mesmo pelo Diabo. Agora apanho o avô Ladislau e, com aquela sua prosápia de judeu sabido, ele ensina-me que também comiam disso aqui há cerca de cem anos, pouco mais. Essa mistura de pão velho e água nova que se chama de miga, palavra saborosa e esmigalhada pelo saboreio entre dentes e papilas gustativas.

Uma vez que é função dos intelectuais encontrar a voz certa para o paladar mais agradável, eis-me regressado do meu Kapiandalo natal à biblioteca municipal de Benguela, onde espreito as etimologias de Fr. Francisco de S. Luiz, muito da minha predilecção por inusitadas e ainda assim prováveis. Era para ele a miga uma espécie de sopa, substantiva, que vinha de “migar, partir em pequenos bocados, e misturar para fazer sopa.” Ele tira a miga directamente do grego (“pouco usado”) migw, misturar e dos seus parentes miga (misturadamente) e migaV (mistura). De modo que, em homenagem aos nacionalistas gregos de Angola de sobrenome Dáskalos e aos judeus errantes que por aqui se misturaram, penso fazer este sábado nada menos do que uma boa muqueca de migas e servir assim a lusofonia inteira. Sou ambicioso, sim. Quero bom jindungo, variante mais colorida da chamada malagueta, aliás, quero aquele esticadinho que pica mais e não serve para decoração, misturado com uísqui e azeite doce a cantar desde 19 e troca o passo. Muitos passos para trocar, aliás, na longa sabática de hoje. Ou sabatina? Hi!...


06/06/2008

poema disperso de mário antónio

13. Milenka, o teu mar, húmido Tão largo como a gare Vazia numa madrugada, Fica preso do que não se esperava: Dois rostos apontados a horizontes opostos Buscando, Milenka, o uno Que somos, divergentes. Milenka, somos Jano ou somos Juno Nesta gare já cheia?
(in Colóquio Letras, n.º 72, março 1983, Lisboa, FCG, pp. 69-71)