[...] provoca em nós processos que a desenham em linhas gerais, nossa memória dirige à percepção recebida, por semelhança, antigas imagens cujo esboço já foi traçado e guardámos. Ela cria assim pela segunda vez a percepção presente, ou melhor, duplica essa percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo.
Isto foi escrito por Henri (Henrique) Bergson (o filho da montanha), que deve ter visto lá do alto o sol a erguer-se, com ascendência judaica e sobrenome de origem médio-germânica.
É surpreendente, para um leigo como eu (alguém que não sabe mas colhe), que a neurobiologia venha confirmar e precisar isto mesmo no século XXI. Essa afirmação bergsoniana, para a teoria da arte ou da leitura, é a base de tudo quanto se possa dizer dentro de tudo quanto se possa constatar em ciência. O primeiro movimento é o da primeira criação: abertura à perceção (que também pode vir de sensores atentos aos órgãos internos do corpo), espanto, visão primeira, que não conseguiremos nunca definir em palavras mas, por iss mesmo, tentamos exprimir, atingindo uma formulação nova. O segundo movimento é hoje popularmente conhecido em certos meios como de feed-back, ou seja, recuperar do espanto a partir das imagens evocadas pelas imagens percebidas imediatamente. O primeiro movimento agita o fundo de representações disposicionais (para usar o conceito desenvolvido por António Damásio), levando à primeira geração do novo, que alguns chamam de insight. O segundo movimento articula a novidade com passado, as expetativas da receção, a história da humanidade e da arte. O primeiro movimento, para simplificar, é criador, na medida em que provoca uma reorganização do guardado; o segundo é coletor. O primeiro suporta a invenção, o segundo a leitura, seja a primeira leitura feita pelo criativo sobre a novidade, sejam as últimas feitas por seus leitores a cada instante, em qualquer parte do mundo e da história. Aí temos a teoria da criatividade e a estética da receção. Aí temos tudo o que há de fundamentalmente novo e tudo o que se colhe condicionalmente lendo, manipulando, escolhendo por partes.
A afirmação de Bergson, corroborada pela neurobiologia, traz em seu bojo toda uma teoria da literatura. O que parece não estar aí convocado, expresso, é o que não se diz e o indizível, por definição, não falta.