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Átomos estéticos são também cognitivos
“Quando vemos algo além de nossas expectativas, pedaços locais de tecido cerebral geram pequenos ‘átomos’ de afeto positivo. A combinação ...
30/03/2009
tomás jorge
Procurar: Areal: poemas, 1961 Talamungongo... olha o mundo!, Luanda, Kilombelombe, 2005GAJAJA
Fruto pálido, empaludado… Cereja dos trópicos de cor desmaiada. Luanda: - onde estão as tuas gajajeiras que a troco dos seus frutos pedradas eu lançava, pedradas que magoavam - pedradas de criança! Por certo que foram destroçadas, sepultadas em teus alicerces da Brito Godins e de todas as Ingombotas, tal como os frondosos cajueiros. Vi hoje uma gajajeira já quase morta. Havia pedras a seu lado, areia e cimento e um buraco longo, rodopiando, fazendo quadrados, rectângulos, quadrados… Se a minha fortuna não fosse feita de sonhos, compraria aquele terreno. A copa da gajajeira seria o meu chapéu, a umbela dos dias quentes e das noites de luar e de cacimbo. Luanda: - onde é que estão as nossas gajajeiras? Essas gajajeiras que me davam as gajajas da minha infância os frutos da minha vadiagem! Eu atirei pedradas! Mas tu, Luanda, o que fizeste delas?
juan bautista morán
26/03/2009
corpos que sonham
23/03/2009
marta vasil
cooperações e corporações
22/03/2009
antonio quino, évora, margarida morgado
A arte tem dessas coisas. Promover o sublime; o traço elementar dum objecto, e fazer dele sujeito dum mundo antes inimaginável, onde os dispositivos artísticos se manifestam no belo. Ela cria mitos e desenvolve essências puramente estéticas na sua relação simbólica com a quase insensível sensibilidade humana. Por isso, ao visitar Évora sob os olhos da poetiza, sentimos o misticismo convocado pela ancestralidade vigiada pelo silêncio. Até as paredes parecem ter a nobre missão de nos hipnotizar com informações secas e imagens ilusórias, que vagueiam no nosso imaginário, sobre celtas, romanos e árabes; judeus, muçulmanos e cristãos. A própria história de Portugal aparece escrita, defendida e contada pelo mutismo da grande muralha circular, onde se conserva um rico espólio, considerado património comum da humanidade. Sempre acolhedora e pronta a amamentar quem busca o encontro com o passado, pode dizer-se, ao ler Margarida, que Évora se afeminou no seu solo situado para além do Tejo. E tal como as margaridas silvestres que nascem no campo sem qualquer acção humana, a cidade conserva a sua natureza de sobrevivência na frequente inospitalidade do tempo. Évora é, também, uma flor do campo, pela sua delicadeza, fragilidade, e por sobreviver de forma singular às intempéries do tempo e aos actos – por vezes irracionais – dos homens. E se Évora metaforicamente se exibe como uma Margarida, a poetiza adoptiva da cidade, Margarida Morgado, cobre-a na sua poesia com um céu intensamente azul para reelevar o alimento líquido dos seres vivos, que corria pelo aqueduto sobre o tecto dos homens. E assim devolver Évora a substância do seu destino que, como cantou Amália Rodrigues [Fado da Adiça], é linha recta, um traçado à primeira vista. Eça de Queirós convenceu-se certa vez de que um artista não pode trabalhar longe do meio em que está a sua matéria artística. A nossa poetiza ouviu o mestre e, como guia construtora do enigma, plantou os pés em Évora para ser capaz de lembrar que as sombras na cidade encontram a sua luz “segredada pelas estrelas”, que continuam a testemunhar a já milenar edificação da cidade. Com Água Pródiga, proposta poética de Margarida Morgado, Évora recebeu um cartão de visita traçado num conjunto de versos do caderno designado Évora, cujos signos descrevem a histórica cidade como um recanto dominado por “enigma de ruínas“, que se antepõem às ruínas dos enigmas do comportamento (ir)responsável dos homens tecnologicamente bem servidos. Somos elucidados por água pródiga que Évora é, realmente, um enigma de ruínas, que se refastela na mística muralha, no templo de Diana, na Sé Catedral, no Palácio de D. Manuel, na Igreja de São Francisco, na Capela dos Ossos, etc., sob uma cidade que revela pedaços de descobrimentos e de revelações que ajudam a admirar ainda mais os seus encantos, e desadmirar os dos homens modernos. “Évora dos súbitos labirintos/ que perdidos percorremos/ sem bem saber como entrámos/ nas falsas encruzilhadas/ com segredos e enredos/ de moiras emparedadas”. Afinal, em cada esquina mora uma história, transformada na estória da “(...) milenar menina/ crescida em ermos de solidão/ espreitando pelas esquinas/ de promessas não cumpridas/ na hora prometida”. Num dos átomos de probabilidades de leitura que o verso nos oferece, há a ideia duma interrogação que, de forma indirecta, se aloja aí: numa cidade tantas vezes disputada em nome de crenças e credos religiosos, quantos sonhos escritos no silêncio das almas eborenses não foram (ainda) realizados e quantos morreram sem os ver efectivados? Vamos reparar que “(...) cada rua é um enigma/ feito de pedra e de lua/ a golpes de pedra e de cal”, oferecendo o poder ao incógnito e levando o mistério a permanecer nela, nas suas encruzilhadas embaraçadas que enchem os olhares de fascinação. O místico, o retiro, o anseio e o receio pelo desconhecido e pelo místico, criando um círculo que corresponde exactamente à forma circular do centro histórico da cidade, também são apresentados por Margarida Morgado. As casas com tectos em feitio aboborado, os diferentes arcos fora e dentro das moradias, nas praças e em estabelecimentos comerciais, trazem até nós os modelos arquitectónicos da era medieval, além da velha cidade cercada por muralhas medievais, com mais de 3 km de extensão, e do aqueduto que no passado alimentou a cidade com o transparente líquido da vida. A poetiza, consciente da importância da malícia e dos maldizeres na vida da cidade, inclui-os no seu roteiro literário, ao referir “Évora das ruas discretas/ das histórias murmuradas/ nas passadas de quem passa/ rua abaixo rua acima/ ao longo das horas secretas”. Quais são as horas secretas senão a das estrelas, escolhidas para privadas confissões íntimas, mas observadas por olhos e ouvidos nocturnos treinados para tudo ver e tudo ouvir para em condições ao povo transmitir no modo alentejano. Mas Évora não são apenas as paredes. Há os seres, de “(...)lutos infinitos/ sufocados em não ditos/ em prantos nunca chorados/ senhora onde o sol se demora/ no cal das paredes/ embora a sombra já ande a rondar” pela praça do Giraldo, aonde os eborenses se dirigem para receber (ler) no tradicional pilar as notícias sobre os que na terra deixaram de ser. Mas ainda continuam a estar. São novamente as incógnitas, os mitos e os heróis convocados pelo saudosismo dos seres cansados e em busca duma razão para continuarem a ser. Esses mesmos se concentram, dia após dia, nas ruas estreitas ou praças animadas por homens desconhecidos per si, mas que passam a conhecer-se e são conhecidos nas falas alheias e viram motivos de conversa nos “(...) sussurros murmurados/ dos segredos ciciados/ sobre quem vai a passar”. Na descrição de Margarida Morgado, as cores quentes, frias e neutras, coabitam em harmonia, numa sintonia que se projecta na relação dos alentejanos amantes duma boa conversa e dum bom descanso. Uma exemplar harmonia que obedece a um código de conduta natural, mas que não está no roteiro hereditário das relações entre os homens no Planeta. Margarida escreve sobre as paredes caiadas de branco, que contrastam com o luto das gentes, focados por luzes que irradiam e se reflectem nas mesmas paredes brancas e no lustro do preto dos eborenses. No entanto, perante esta enormidade de transparência, há as sombras do passado que nos transportam para épocas indefinidas para tentar descortinar o que naqueles terreiros se terá passado. Na expressão das cores sob as muralhas, há “(...) um céu azul/ intensamente azul” trazido como declaração do radiante, do excesso de calma e da despreocupação presente em Évora, modelo nem sempre imitado e frequentemente ignorado pelo mundo das ideologias políticas. A presença do clima influencia, evidentemente, o modo de estar dos eborenses, provocando, por vezes, um silêncio violento, como se pode ler na seguinte estrofe: “Évora do sol pelo estio/ das sombras quando faz frio/ e não se ouve ninguém/que a chame de mais além”. Perante altos ou baixos graus de temperatura, as gentes se recolhem e se encolhem nos seus aconchegantes casebres, e o vazio enche as ruas. Aliás, a vinda do estio transporta consigo o sentido de preguiça, de ócio mesmo. A poetiza lembra que há a esperança nos olhares amachucados pelo tempo, assente nos sonhos resguardados e histórias que são fechadas nas suas amadas muralhas “das vidas não vividas”. Depois disso, poderíamos pensar que Margarida Morgado está, finalmente, a definir a tão complexa felicidade. Mas não. Costuma se dizer que a felicidade do homem não pode ser plena se, num outro extremo, um outro homem conhecer somente a infelicidade. Por isso, em aviso, Margarida Morgado lembra que o frio das muralhas de pedra não gelou a sensibilidade eborense, perante a frieza dos homens em tudo fazer para se auto-extinguirem. E a interdependência dos homens não poderia ter uma maior forma de ser expressada senão pelo paternalismo universal pelas crianças, que pelo mundo selvagem são transformadas em defuntas pela máquina avariada que há no lugar dos corações e pelo egoísmo que se alojou no cérebro dos adultos. Contra o mal feito às crianças, a poetiza escreve: “roubaram-nos a alegria errante/ que surgia/ nos actos itinerantes da vida/ no dia-a-dia/ mataram as crianças/ que crescendo/ nos sorriam ao passar/ à ida para a escola/ eram o teu/ o meu/ o filho da vizinha/ nem nos conhecíamos/ mas era para nós/ que também sorriam/ hoje/ esta dor inominável/ veio dizer-nos que éramos amigos também/ os mesmos que amanhã poderão chorar/ pelos teus/ pelos meus/ pelos nossos filhos/ por ora nem nos conhecemos/ évora não estás no abrigo do horror/ que faz de todos nós monstros hediondos/ Choramos os filhos de beslam/ são nossos também”. Conhecendo-se um pouco de Évora, pode notar-se a pouca juventude entre os seus habitantes, com poucas crianças nas suas ruas, uma realidade que certamente condicionará a transmissão do legado familiar das gentes do campo. Porém, o aviso transborda muito para além dessa eminente descontinuidade genealógica. É dirigido à espécie humana! Aviso é também um sentido de solidariedade com o mundo, globalizando-se através do seu humanismo, chamando a atenção da irresponsabilidade consciente dos homens, ao realizarem acções criminosas, como a efectuada contra uma escola em Beslam, na Ossétia do Norte, nos primeiros dias de Setembro de 2004, onde morreram mais de 180 crianças. Mais de cento e oitenta crianças, que saíram das suas casas para a escola, lugar onde era suposto aprenderem a conhecer e a amar as sociedades e o mundo, mas acabaram como reféns de um grupo de terroristas e, posteriormente, mortas na sequência duma tentativa de resgate mal conseguida. Essa desimportância à vida que os homens têm vindo a promover e a divulgar, perderia fulgor se se visitasse e se levasse mais a peito memórias como a de Beslam, ou mesmo a Capela dos Ossos, em Évora. Construída no século XVII, esse monumento “enigma”, que nos leva talvez a questionar as razões da existência humana, pretende transmitir a mensagem da transitoridade da vida aos homens, segundo os manuais lá existentes. O sentimento humanista de Margarida Morgado está também intimamente relacionado com o seu desenvolvido pendor pedagógico. Ela sabe que a solidariedade é algo que deve ser exibido e a paz que ela mostra existir em Évora é também prova deste seu empenho. Na esperança poética, que submerge na preocupação sobre o destino dos homens, a projecção que se pode reter de aviso é de que a autora parece pretender contagiar as nossas retinas com a metáfora do enigma de ruínas de Évora: “o olhar perde-se nas esquinas/ embate em sombras/ [mas sempre] liberta-se em luz”, porque a vida tem que continuar...
(texto de António Quino, feito a partir de Évora. Obra referenciada: MORGADO, Margarida. água pródiga. Évora, Associ’arte, pp. 115-121, 2007).