O dia começou estranho, viciado em contratempos. Cerca das 12h me ligam de Lisboa a dizer que o Inácio Rebelo de Andrade morrera na semana passada. Huambino, co-fundador e responsável da col. Bailundo com Ernesto Lara filho, sugeriam-me até que escrevesse uma nota fúnebre. Investiguei e talvez não tenha sido ele quem morreu. Quando me convencia já disto, ligam-me a dar a notícia da morte do Jorge Macedo (por acidente cardio-vascular), que logo vejo na TPA. Foi outro choque. Por diferença de ideias (discordávamos em quase tudo) algumas vezes nos zangámos, mas éramos amigos e fomos companheiros na direção da Casa de Angola em Lisboa, onde trabalhei apoiando-o no sector cultural, sob o comando geral do mais velho Edmundo Rocha. Tertulizámos muito com o Tomás Jorge, que também faleceu há pouco. Também o acompanhei quando em Portugal andava mal e sozinho, não tendo mais amparo que o Dr. Edmundo e o Tomás Jorge, acusado de muita coisa injustamente. Mais tarde em Luanda nos revíamos, com o Virgílio Coelho e, quando ele veio cá, com o Tomás Jorge outra vez. Recordo-me particularmente de uma soberba funjada no Kinaxixi - eu, ele e o Tomás - antes de irmos discursar e declamar no ISCED de Luanda. Lembro-me também da altura em que ele refilava à toa (pelo menos assim me parecia), particularmente com um miúdo que andava muito pelo Kinaxixi, dizia-lhe seriamente que "andas-me a espiar, é?, andas-ma escutar? seu bandido, julgas que eu não sei que és da bófia?". Repetiu isto muitas vezes e, de repente, nunca mais falou nada sobre o assunto. Passou-lhe. Lembro-me também das nossas conversas sobre literatura, não sobre ideologias literárias, mas sobre literatura mais propriamente e sobre marimbas e cultura tradicional kimbundo. São recordações destas que prefiro guardar, meu kamba. Muitos te farão o elogio fúnebre e bibliográfico. Está certo. Mas eu não faço. Fico-me por aqui. Recordando o poeta das harmonias, sobretudo na sua primeira fase, o animador de coros religiosos, o seu amor pela música tradicional angolana e o grande amor por Luanda, sua terra de eleição. Prefaciámo-nos também, escrevemos um do outro, ficou isso gravando uma boa amizade nas páginas volúveis dos livros. À família enlutada e em particular ao Fernando Macedo aquele abraço, forte, amigo, o mesmo que nos dávamos quando nos revíamos. E que a Té Macedo cante como só ela sabe aquela mesma música feita com o pai...
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“Quando vemos algo além de nossas expectativas, pedaços locais de tecido cerebral geram pequenos ‘átomos’ de afeto positivo. A combinação ...
26/09/2009
jorge mendes macedo
O dia começou estranho, viciado em contratempos. Cerca das 12h me ligam de Lisboa a dizer que o Inácio Rebelo de Andrade morrera na semana passada. Huambino, co-fundador e responsável da col. Bailundo com Ernesto Lara filho, sugeriam-me até que escrevesse uma nota fúnebre. Investiguei e talvez não tenha sido ele quem morreu. Quando me convencia já disto, ligam-me a dar a notícia da morte do Jorge Macedo (por acidente cardio-vascular), que logo vejo na TPA. Foi outro choque. Por diferença de ideias (discordávamos em quase tudo) algumas vezes nos zangámos, mas éramos amigos e fomos companheiros na direção da Casa de Angola em Lisboa, onde trabalhei apoiando-o no sector cultural, sob o comando geral do mais velho Edmundo Rocha. Tertulizámos muito com o Tomás Jorge, que também faleceu há pouco. Também o acompanhei quando em Portugal andava mal e sozinho, não tendo mais amparo que o Dr. Edmundo e o Tomás Jorge, acusado de muita coisa injustamente. Mais tarde em Luanda nos revíamos, com o Virgílio Coelho e, quando ele veio cá, com o Tomás Jorge outra vez. Recordo-me particularmente de uma soberba funjada no Kinaxixi - eu, ele e o Tomás - antes de irmos discursar e declamar no ISCED de Luanda. Lembro-me também da altura em que ele refilava à toa (pelo menos assim me parecia), particularmente com um miúdo que andava muito pelo Kinaxixi, dizia-lhe seriamente que "andas-me a espiar, é?, andas-ma escutar? seu bandido, julgas que eu não sei que és da bófia?". Repetiu isto muitas vezes e, de repente, nunca mais falou nada sobre o assunto. Passou-lhe. Lembro-me também das nossas conversas sobre literatura, não sobre ideologias literárias, mas sobre literatura mais propriamente e sobre marimbas e cultura tradicional kimbundo. São recordações destas que prefiro guardar, meu kamba. Muitos te farão o elogio fúnebre e bibliográfico. Está certo. Mas eu não faço. Fico-me por aqui. Recordando o poeta das harmonias, sobretudo na sua primeira fase, o animador de coros religiosos, o seu amor pela música tradicional angolana e o grande amor por Luanda, sua terra de eleição. Prefaciámo-nos também, escrevemos um do outro, ficou isso gravando uma boa amizade nas páginas volúveis dos livros. À família enlutada e em particular ao Fernando Macedo aquele abraço, forte, amigo, o mesmo que nos dávamos quando nos revíamos. E que a Té Macedo cante como só ela sabe aquela mesma música feita com o pai...
25/09/2009
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20/09/2009
arménio vieira no inferno
Acabada a leitura da ficção narrativa de Arménio Vieira intitulada No inferno. Uma leitura estimulante, atual e despretensiosa. Com fina ironia, o autor compõe a alegoria impiedosa do escritor de hoje – e esses dois traços (alegoria, ironia), voltados para o escritor contemporâneo, vinham já de O eleito do sol.
Durante a maior parte deste livro ele imagina um homem fechado numa boa residência, com tudo à mão, só não podendo sair enquanto não escrever um romance excelente. Como hoje os escritores estão fechados nos seus escritórios, com toda a literatura em rede a um toque do teclado, assim aquele, fiel ao compromisso com o editor. Hoje o escritor é aquele que, através do computador, tem acesso (no mínimo) ao conjunto de todos autores, ou obras, canónicos e globalizados. É como se, de repente, a sua memória visualizasse toda a literatura mais ou menos conhecida no mundo (essa é das imagens do livro).
Uma das ironias está no facto de o protagonista não conseguir escrever um romance apesar disso – talvez mesmo por causa disso. Arménio Vieira também não chega a escrever um romance. Ele ironiza e faz aquilo que ironiza, globalizando assim a sua narrativa apesar do gozo com que parece retratar a globalização literária. Goza com ela e demonstra possuí-la. Daí um dos muitos interesses da obra, o das intertextualizações a que obedece insinuando a loucura livresca do protagonista.
Ao mesmo tempo o escritor demonstra assim os conhecimentos alargados que possui e que a alusão, a elipse, pouco mais, é o que resta do arsenal da retórica literária para o escritor de hoje, artista de colagens e de insinuações em rede. A partir de um certo momento, já mais perto do fim, o rigor da construção narrativa desfaz-se também, com os sonhos loucos da personagem, e a trama ludibria a expectativa que tinha criado em nós, confirmando que tudo é um ludíbrio na literatura, particularmente na atual. Mas ele entra no ludíbrio e constrói uma obra de interesse para qualquer leitor médio no mundo, interagindo com as principais obras, teorias e autores cuja banalização desconstrói.
Por isto e muito mais é um livro indispensável, original e estimulante no panorama das literaturas africanas lusófonas e em qualquer outro. Um dos seus principais trunfos reside precisamente no afastamento da tacanhez, do preconceito, da redução ao umbigo, dos ditames estéticos programados. Um livro livre de um homem livre, muito bem escrito, muito bem imaginado.
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