Páginas

Páginas

24/11/2009

Cordas de música
não sufocam
rumores de asas

a ruga e a mão

Este blog já não pode ser tão generalista. Os leitores são muito diferentes e o leque abarcado pelas mensagens é demasiado abrangente. Para comodidade de quem lê, as mensagens onde faço geralmente uma curta reflexão sobre assuntos literários, políticos, críticos e teóricos passam a figurar em novo blogue, chamado a ruga e a mão (lá saberão porquê). Aqui virei anotando o resto, sobretudo imagens.

O problema da interpretação

Com este título pretensioso pretendo somente comunicar uma observação que pode ser importante se nos fizer pensar um pouco.
Os que estão acostumados com estas questões, tão debatidas por críticos e teóricos das universidades euro-americanas, já foram buscar, a esta altura, à sua memória pessoal, todo o acervo de possíveis perguntas, de conceitos, termos, pressupostos em torno de «interpretação». Porém, desta vez, experimentemos algo de novo. Dispamo-nos disso por momentos para nos descondicionarmos. Eu quero falar da interpretação como sintoma do estado mental ou cultural de uma cidade por exemplo. Acontece em países como Angola (e convém que se fale deles conhecendo bem a sua história), nas suas cidades maiores sobretudo, que as pessoas não conseguem interpretar bem o que leem, por vezes até mesmo o que ouvem.
Uma das variáveis a controlar é, sem dúvida, linguística: língua-mãe do intérprete, sua primeira língua, língua veicular do intérprete, línguas que domina, etc. Agarrada a essa vem outra variável: a cultura. Qual a cultura de berço, qual a cultura por assim dizer veicular, etc. Então a resposta para o problema da interpretação, geralmente articulada com qualquer forma plástica de deconstrucionismo, é a de que a interferência da cultura 'ocidental' – e da língua que lhe anda associada – afeta o desempenho interpretativo das pessoas. O que venho postular é a possibilidade de isso não corresponder à situação real.
As culturas tradicionais e orais envolventes das maiores cidades angolanas alicerçam parte muito significativa da formação dos seus jovens em exercícios de sagacidade e analogia. Por isso recorrem aos provérbios, às adivinhas, às alegorias (nos contos), depois aos poemas cantados. Isso implica desenvolver precisamente a capacidade interpretativa. O que se passou com as populações urbanas – e mesmo com a maioria dos que vieram do 'mato' – foi uma rutura relativamente à formação tradicional. A par dessa rutura, não se deu a aquisição completa de uma nova cultura urbana e mais voltada para a escrita. De maneira que nos encontramos um 'estado mental' ou cultural atípico, voltado para soluções imediatas em resposta a problemas miúdos do dia-a-dia, em que tudo o resto é posto em suspenso. Neste momento de transição não se chega ainda a constituir uma nova síntese, pessoal ou coletiva, pensa-se e vive-se num hiato cultural e mental. Para superá-lo é preciso um grande esforço pessoal, sem dúvida, e evitar os dois maiores perigos: um, o mito do retorno ao passado; o outro, o mito da assimilação completa às sociedades mais desenvolvidas, mais aperfeiçoadas tecnicamente (e a técnica não anda sozinha). O mito do retorno ao passado foi já experimentado, por exemplo pelos românticos europeus para enfrentar a revolução industrial e outras, pelos brasileiros para enfrentar em parte os mesmos desafios globalizantes e os da independência recém-adquirida (refiro-me ao indianismo, claro). Apenas se criou mais uma artificialidade e mais uma tensão. Por tal motivo esses caminhos foram abandonados. A síntese inevitável dos mundos em rutura deu-se naturalmente a à margem dessas programações ideológicas e intelectuais. Felizmente também.
De maneira que o problema da interpretação nos coloca perante um problema mais vasto, se não mesmo mais sério. Que é o da ausência de referentes. O intérprete comum precisa de referentes, mas de referentes que possam guiá-lo no dia-a-dia. Os abstratos ficam para nós, académicos e pensadores. O que temos então de encontrar são exercícios que treinem de novo a destreza, sagacidade, capacidade analógica dos povos urbanizados em novos contextos e de tal forma que possam enfrentar, a partir daí, qualquer novo contexto. Para fazê-lo de forma prática, 'exata', 'neutra' (ou seja: que não provoque suscetibilidades nem caia em mera abstração), só temos uma 'arma' nas mãos: levar as pessoas a ver como os pequenos textos do quotidiano (frases, 'dizeres', 'bocas', alusões, brincadeiras de olhos verbais) como esses pequenos textos funcionam e, por consequência, mostrar que os interpretamos e como somos capazes de interpretá-los. Nesses quotidianos a interpretação, quando queremos, funciona (quando não queremos agarramo-nos propositadamente a referências que o outro não domina e, portanto, falsificamos a comunicação). Aí continuamos a fazer escolhas racionais e instrumentais que no entanto sustentam interpretações (v. Elster e a teoria das escolhas racionais). Ou seja: o problema da interpretação não existe aí, o que existe é um problema de deslocação dessa capacidade do quotidiano para o texto. As grandes dualidades abstratas e geométricas em que o deconstrucionismo cinicamente se baseia não resolvem esse problema. Que é do domínio da explicação (veja-se essa etimologia e depois continuamos. Agora tenho que ir dar uma aula).

irving kristol

Desde o início dos anos 80 que comecei a ouvir falar no 'neo-conservadorismo' americano, a partir de uns artigos de Nuno Rogeiro publicados em Portugal. Sempre me interessou, embora tenha divergências, como é natural entre pessoas que pensam por si próprias. O que me tornava afim deles era o desmontar dos mitos da esquerda triunfante dos anos 50 a 70, cheia de ideias feitas, preconceitos, futilidades e folclore erigidos em ciência política e políticas sábias, próximas do 'povo'. A diferença vinha sobretudo de eu não ser conservador. Compreendo o conservadorismo como co-natural à humanidade e acho mesmo que, no sentido lato que é dado à palavra, os angolanos foram sempre tendencialmente conservadores. Por essas e outras não me pareceu nunca viável aquela revolução pregada aqui depois da independência - nem nenhuma outra. Também não sou reformista. Acho que a dialética entre conservação, ruptura e revolução (ou reforma) é que, no seu conjunto, coincidem com o ser humano. E vivo assim, nessa dialética. De maneira que, em função dos contextos, posso colocar-me em qualquer dos três polos - sem nunca perder de vista os outros dois. Uma das figuras de proa do neoconservadorismo norte-americano foi Irving Kristol, de origem judaica pobre que foi subindo, inicialmente, entre judeus, dentro dos grupos de interesses dos judeus incluindo (sobretudo) ricos. A sua ascensão social e, sobretudo, a origem humilde assumida sem complexos, tornou-o sensato e fez com que evitasse continuamente mitos e idiotices de uma esquerda mimada, de filhinhos de papai que acham que tudo se resolve com afagos, migalhas bem doseadas, fraternidades cínicas e falinhas mansas - para os pobres, claro. Na feira do livro organizada em Luanda pela Chá de Caxinde encontrei o livro Neoconservadorismo: autobiografia de uma ideia a um preço razoável: 1000 kwanzas. O primeiro capítulo é de facto a autobiografia de Kristol. Interessantíssima a vários níveis e esclarecedora para quem fala desse 'movimento' da filosofia política norte-americana sem o conhecer bem. Um gosto amargo me fica sempre que leio estas autobiografias intelectuais, por assim dizer, como a de Popper: aquelas pessoas liam, comentavam, justificavam de forma clara e assumida as suas opções, discutiam com os amigos e inimigos as suas divergências de forma fundada e aberta, sendo que, muitas vezes, desse jogo-debate de argumentos e contra-argumentos nasciam filosofias políticas e teorias científicas que nos marcaram a todos. Julgo que a isso se deve (em boa parte mas não só) o crescimento intelectual da Alemanha, da Inglaterra, dos EUA no século XX, século da decadência da cultura e da filosofia francófonas - particularmente na sua segunda metade. Lembro-me de que ainda há pouco mais de um ano coloquei algumas perguntas bem fundadas e sem dúvida incómodas a um pensador político português, homem bem situado e conceituado à esquerda, defensor aparentemente da liberdade de discussão e da abertura a opiniões, filosofias e teorias criadas fora do 'primeiro mundo' e em função do choque entre o pensamento existente e as realidades locais. A reação do ilustre pensador foi a mesma que geralmente encontro na vida intelectual portuguesa, brasileira, angolana: sentiu-se picado, provocado, ainda hesitou um bocado porque terá percebido que havia conteúdo no que eu dizia, mas logo a seguir o sentimento de ser ultrajado por ter sido desafiado predominou e disparou num discurso inflado contra os seus fantasmas políticos, pelos vistos representados ali por mim. Lembro-me também de em Moçambique ter dito, numa conferência, que não produzimos pensamento próprio e que isso era o nosso maior problema, não produzirmos pensamento, filosofia, teoria, não apresentarmos métodos e hipóteses de alcance global que discutam em pé de igualdade (mas por eficiência dos seus raciocínios) com as outras, em pé de igualdade ou em vantagem, porque uma teoria que não apresente vantagens não deve ser apresentada em lado nenhum. A reação foi de silêncio total. Um norte-americano (por acaso ligado ao Partido Republicano) ficou muito corado e parece ter desaprovado. Algumas pessoas que não conheço olharam-me com olhar de reprovação. O resto nem terá percebido 'onde é que eu queria chegar'. Lembro-me ainda de um outro caso paradigmático: ao fim de uma conferência de interpretação crítica de uma obra muito conhecida permiti-me discordar e explicar porquê, não baseando-me em pormenores mas no ponto de partida que, logicamente, condicionava todo o resto da exposição - uma exposição coerente a partir desse ponto. Creio que, de uma forma geral, as pessoas me deram razão mas isso não era importante ali. Significativo foi que, durante mais de um ano, a colega não me dirigiu a palavra e, no início, ficava com a face vermelha quando me via. A substituição da discussão de ideias pelos sentimentos de afronta (quando nos apresentam opinião contrária) e eliminação da afronta (quando respondemos) silenciando o adversário são a causa do nosso atraso intelectual e científico. Raramente encontramos alguém com quem consigamos falar expondo opiniões divergentes num diálogo em que a insistência implica proficuidade, apuramento nos argumentos, aprofundamento obrigatório no estudo para poder responder. O cientista, entre nós, não é propriamente cientista: de forma geral pouco investiga, manda umas 'bocas' e prefere falar de cátedra, em conferências sem diálogo, ou boicotar o diálogo de qualquer outra forma, para não ter quem o desafie. É muito grave desafiar, discordar, e muito perigoso admitir que nos façam isso... na ciência, na crítica literária, no mundo cultural e repito, sabendo de antemão que me vão ter mais raiva ainda certas pessoas, repito, em Angola, no Brasil, em Portugal. Ora, quando a cultura não suporta nem rentabiliza a diferença, não podem os intelectuais estranhar que nas outras esferas da vida social (económica, política, etc) não se respeite nem se aproveite uma verdadeira concorrência. Quando formos capazes de, entre nós, assumirmos claramente e discutirmos fundadamente as nossas divergências, sem ser para chegar a 'uma só voz', então veremos que por consequência tal prática se espalhará para outras esferas da vida social. E onde se não espalhar teremos moral para criticar.

15/11/2009

mário antónio até se revoltarem os escravos

Até se revoltarem os escravos. Até se rebentarem as comportas. Até sismos divinos, roncos cavos Da terra inquieta sob as pedras mortas Sacudirem a nossa quietação. Até que luas doidas sobre o mar Sejam sinal da Alucinação. Até se extinguir a gentileza Que mais nos liberta, nos corrompe. Até sermos capazes de amar, Até sermos capazes de morrer.

provérbio russo

a sede nos ensina o valor da água

amélia dalomba ao novo jornal

Esclarecedora e frontal a entrevista que Amélia Dalomba deu ao Novo jornal sobre o Prémio Nacional de Cultura e Artes. Em resumo: o júri decidiu homenagear este ano Viriato da Cruz na disciplina de Literatura; o Ministério negou, convocou nova reunião do júri excluindo alguns membros propositadamente (entre os quais Amélia Dalomba) e, após pressões (ou 'explicações') do tipo há iniciativas culturais que serão prejudicadas se insistirem em Viriato, o júri acabou por dar uma prenda envenenada a João Melo. É mais uma atitude para quem duvidava ainda de que temos um Ministério que visa conduzir o país ao dirigismo e à ditadura cultural. Já tivemos o caso do Festival de Cinema - onde houve literalmente censura - o caso do Encontro Óscar Ribas - onde houve tentativa de censura - e o caso da Lusíada, quando da entrega do espólio de M. Pinto de Andrade. Agora dá-se este escândalo de, contra o regulamento, não se respeitar a decisão do júri, impondo-se outro nome. A máscara caiu de vez e os recursos do Estado estão a ser usados para impor uma mordaça aos cidadãos. O Prémio Nacional de Cultura e Artes ficou desacreditado, tem agora o significado negativo de um instrumento de controlo cultural. E não me venham com mais avisos. Eu já sei que, se puderem, fazem-me mal. Mas digo o que tenho a dizer.

gustavo costa na hor@gá

"Temos medo até de mortos, como o demonstrámos esta semana com o vergonhoso fantasma envolto na tentativa de atribuição do Prémio Nacional da Cultura, na disciplina de literatura, a Viriato da Cruz!" -desconhecíamos isso aqui em Benguela... Uma senhora passou pela janela e disse que não viu nada.

datas

9 de Novembro de 1799: acabou a Revolução Francesa. 9 de Novembro de 1938: noite de cristal (de 9 para 10 de Novembro), em que os apoiantes de Hitler (já no poder) matam perto de 100 judeus, destroem 267 sinagogas e 7500 lojas para limpar a Alemanha da lama do judaísmo. 9 de Novembro de 1989: queda do Muro de Berlim. Hoje?

nicolau saião viu o seu demónio

ATÉ AO FIM

Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio

estava deitado

A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem

Dorme justamente como um anjo.

A janela pouco cerrada e o sofá chegado

à plena luz

A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se

Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical.

Congeminei

Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara

por uma tasca ou que

aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho

Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta

fraternidade bebedora.

Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto

uma vaga felicidade

Dizendo melhor uma centelha de contentamento

ou alegria, ou

assim como que a sensação de quem vira o mundo

no seu lugar real

Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava

Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário

Cheirava um pouco a flores e vagamente

a desodorizante

Um livro tombara no chão, ficara à espera

aberto anquilosado

Quando abri a porta da cozinha vi sobre

o fogão um tacho com

Uma iguaria qualquer com que se entretivera

certamente antes de cair no leito vencido

talvez pelas canseiras das últimas horas.

Se minha mãe estivesse viva decerto

lhe teria aplicado um raspanete

Uma expressão em dialecto se calhar

um tabefe levezinho. O meu pai

Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade

Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta

Contos do dia e da noite, o irresistível

fascínio do desconhecido.

Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha

Revirava-se-me na cabeça.

Quando olhei pela janela o horizonte

pareceu-me uma linha ténue.

Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes

por entre dentes eu diria talvez

coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória

Sibilina dos sobreviventes imutáveis.

alda lara testamento


À prostituta mais nova 

Do bairro mais velho e escuro, 
Deixo os meus brincos, lavrados 
Em cristal límpido e puro...

E àquela virgem esquecida, 
Rapariga sem ternura, 
Sonhando algures uma lenda, 
Deixo o meu vestido branco, 
O meu vestido de noiva, 
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo 
Ofereço-o àquele amigo 
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus 
Das contas de outro sofrer, 
São para os homens humildes 
Que nunca souberam ler. 
Quanto aos meus poemas loucos, 
Esses, que são de dor 
Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança 
Desesperada mas firme, 
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora, 
Em que a minha alma venha 
Beijar de longe os teus olhos, 
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

prémios nacionais direitos humanos

Ultimamente vivemos dias de prémios. Saíram finalmente os de Cultura e Artes, pelos quais houve uma espera documental de cerca de 15 dias, mas que tiveram o mérito de acentuar a descentralização das atribuições. Foram também descentralizados os prémios nacionais dos direitos humanos, concedidos a duas pessoas e uma entidade: o jornalista do Folha 8, Domingos da Cruz, pela persistência na defesa pública dos direitos do cidadão; o ativista Luís Araújo, que se tem destacado na defesa dos direitos dos desalojados em consequência das reabilitações urbanas, com a ONG SOS-Habitat, que coordena; a ONG OMUNGA de Benguela, que tem estado sempre ativa na promoção de uma consciência crítica e cívica sem a qual, obviamente, não há exercício do principal desses direitos: o de abrir os olhos para ver. O júri foi presidido por Marcolino Moco, ex-primeiro ministro angolano e atualmente professor universitário. Parabéns a todos, claro.

joão melo parabéns

João Melo ganhou o prémio nacional de cultura e artes na categoria de literatura. Creio que o prémio se justifica pelo conjunto da sua obra, pela intervenção pública (ainda recentemente, por exemplo, defendeu um tratamento jornalístico mais equitativo), não só pela literatura. É, de qualquer modo, um dos nossos melhores cronistas e um poeta que atinge a excelência na lírica amorosa, sensual, forte, convivial. Daqui os modestos mas soantes parabéns. Como também a Carlos Burity, outro premiado cujo trabalho conheço bem, o intérprete de Ginginda, Carolina, Massemba e outras músicas que desde há muitos anos aprecio. Quanto a Carlos Serrano, que há muitos anos conheci também, na contingência dos congressos e encontros científicos, ainda não li o seu trabalho, que julgo ser fruto de anos de investigação.

claude lévi-strauss sobre criatividade

Nada como um estruturalista para se lhe arrancar uma confissão sobre criatividade. Arriscaria dizer que, em termos lévi-straussianos, a criatividade estalaria pelo menos de dois modos: um modo em 'hiato interno', a subtil desregulação que vai entre estrutura e superfície narrativa, entre funções relacionais e seu preenchimento colorido pelos frutos e pelos bichos da criação; ao que ele chamava música. E um hiato externo: como resolver a agonia do mundo, como unir no mesmo tabuleiro a morte e a vida, esses dois tabuleiros? Se os mitos vêm do fundo da própria estrutura binária do real (o mito funciona assim porque o cérebro funciona assim, porque o universo funciona assim), então, o caso é grave. O mito será a mais extrema criatividade, não por lidar - a ensaiar solucioná-lo mediante uma lógica heróica e total - com o mais difícil dos problemas, mas por o deixar insolúvel, e surdamente inquietador, no quadro da solução, como a silhueta negra do cão picassiano que assombra as cores esfusiantes dos seus 'Três músicos' (da funérea commedia dell'arte). Comentário de José Manuel Martins

claude lévi-strauss josé manuel martins

Há pessoas que, pela maneira de estarem connosco e pelo tempo em que estão, deixam sempre um vazio, mais concretamente: um buraco, o da sua falta. O passamento de Claude Lévi-Strauss, porém, não foi só isso. Pedi a José Manuel Martins, professor de Filosofia na Universidade de Évora, autorização para transcrever as suas palavras acerca disso: "Lévi-Strauss estuda-se ao mesmo tempo como uma figura intemporal da Plêiade, como um pensador contemporâneo pertencente à época exactamente antes da nossa - e como uma figura e um nome históricos que inacreditavelmente ainda está vivo, e intelectualmente activo. Quando um homem assim morre, um homem que sobrevivia a si próprio teimosamente, e um homem cujo pensamento é como que uma espécie de amabilidade da palavra e do sentido devotada aos homens, à natureza, aos seres, a cada coisa (ele, o suposto estruturalista abstracto, mas que dizia: "un peu de structuralisme éloigne de la réalité, mais beaucoup y ramène"), o que se sente - o que eu sinto - é a perda de um pensamento amigo, de um pensador amigo, de uma presença viva e amical que ainda nos tutelava, sage, na sua grande idade, velando por um pensamento incrivelmente clássico e equilibrado que com ele, dos últimos, se nos perdia. Acompanhou alguns anos de curso da licenciatura de filosofia, simultaneamente como um autor no tempo e fora dele: plenamente estruturalista. Às vezes passo, em Cascais e em Lisboa, pelas casas que Eliade habitou. Nunca perdi a esperança de um dia fazer estruturalismo entre as obras divorciadas de um e de outro, duas escolas e duas europas que não se falavam, à semelhança dos índios da Colúmbia Britânica e da linhagem de Édipo e Laios, que só se encontram uns com os outros no célebre baralho de cartas com que a velha raposa jogava aos mitemas sem sair de Paris.

02/11/2009

releituras: dois aa e o sentido da poesia

Ao passar na velha livraria Lello de Benguela - que não é grande livraria, funciona mais como papelaria - comprei livros para reler, pois os exemplares que tenho estão neste momento longe. Dois deles me fizeram revisitar o que de melhor, ou menos pior, os autores empenhados dos anos 60 e 70 puderam fazer dentro dessa linha de engajamento da literatura. O primeiro, que vai sem dúvida muito para além disso (da literatura engajada), é O rio: estórias de regresso, de Arlindo Barbeitos. Pequenas estórias, de gente comum, que podíamos ter visto no quotidiano logo anterior e logo posterior à independência, que traçam no conjunto um quadro humano, antropológico e psicológico muito profundo, que era o da Angola de então. E que, só por si, teriam levado leitores apressados e preconceituosos a compreender melhor o seu próprio país e as estórias de que ele se foi fazendo. O segundo livro chama-se Poemas no tempo, de Arnaldo Santos. A secção com esse nome, dentro da obra, é a que mais reúne (principalmente no fim) poemas militantes. Não foi esse o momento melhor da poesia de Arnaldo Santos (como pela própria antologia se pode ver) mas, ainda assim, dá para perceber que um bom poeta não deixa de o ser por mais que seja má a escola literária que o condicione. Poderá deixar de produzir obras primas, mais profundas ou mais subtis, mas não deixa de ter o sentido da poesia. E o que, sobretudo, faltou naqueles anos do panfletarismo foi, precisamente, o sentido da poesia. Naqueles anos de panfletarismo em que se fazia fogo de artifício com palavras de ordem banalizadas, tal como hoje alguns poetas confundem lírica e verso com pirotecnia bizarra que, por uma via oposta, já não tem nada para dizer, esteticamente fal(h)ando. Isto leva-me ao corolário da conclusão anterior: um mau poeta, seja qual seja a sua escola literária, terá sempre a capacidade de estragá-la, de não a perceber, de a imitar sem o sentido da poesia.