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23/11/2023

Vou dar um salto sobre o abismo - estória da velhice poética



tentando não tropeçar. O conhecido Homero, seja quem for, envelheceu sem desistir. Os de que falarei por aqui, todos, envelheceram sem se calarem. O prudente Horácio calculou pesos e, medindo a guerra e a terra, foi viver para uma quinta não muito longe de Roma, de onde envelheceu com uma sabedoria que transmitia por verso a todos. Houve apenas um problema: sem se ter vivido muito não se podia saborear nem reconhecer a sabedoria. Portanto os jovens iam caminhos afora e continuavam seguindo em busca desorientada, por mais sábios que haja. Essa busca nos é útil, embora possa conduzir ao mesmo, porém um novo mesmo idêntico a outro mesmo. O espelho tem vida própria, não vos surpreenda o aparente paradoxo de mais do que um mesmo que, talvez, apenas se possa chamar idêntico. 
Tentando um salto no abismo sem tropeçar, avisto agora o sublime neoclássico hippie Método de caligrafia para a mão esquerda (António Cabrita). Manteve a transparência, o sentido do ritmo fiel ao ouvido interno, como ao fluxo de perceções e de pensamentos que as examinam. Por isso relata com realismo autêntico (não-escolar) o envelhecimento. Mas, é claro, fica a mesma pergunta que talvez Horácio repetisse ignorando a ausência de resposta: pode um jovem ser velho? Apreciar o que só pela experiência as pessoas conseguem resumir e relatar com beleza?
Não sei. Arlindo Barbeitos, um descendente da casa grande em Angola, envelheceu também, com fiapos de sonho. Enfraqueceu a tensão do verso e das línguas mantendo o ritmo interno, o sopro já pausado mas ainda o seu, ou mais o seu, depurado. Mas o vigor da impressão que nos fica lendo a sua idade já mal se notava - a qualidade não diminuiu, a capacidade de nos transmitir um ambiente psicológico também não - pelo contrário, a oficina melhorou mais ainda. Porquê? Graças à extinção do excesso, à moderação da juventude que se extinguiu no corpo, nos pulmões, na moldura cinza dos olhos um tanto cansados e arredondados - embora afinando a lança pertinaz da perspicácia na pupila negra. O que nos fica?

Dito isto, como escrever quando o corpo começa a aprendizagem da pausa na respiração? A ver a morte aproximar, a grande pausa interestelar. O que fica? 
Não sei. Não faz sentido iludir a idade, num jovem, numa jovem, pintar os cabelos acrescenta a graça, a maturidade porém não se pinta, assume-se tão real quanto a juventude. No entanto, com todos os cabelos brancos penso que não serei velho, em algum ponto irradiante não serei, somos uma estrela, intimamente o que vive em nós é a explosão da estrela que se extingue no resplendor extremo que nos avassala deitando sobre a terra o peso inamovível dos ossos. Há, por tanto, um ponto de luz até à rebentação final, ao big-bang repetido em nós a cada morte ou renascimento. Essa estrela não nos larga. É o menino ou a menina que nos habita e alimenta e se depura nos aniversários diários das pálpebras e das memórias.
Fica o princípio no fim. Começamos a conhecer pelo contraste e complemento entre sombras e luzes. Abrir ainda os olhos, avivar a pupila, ver com a luz, escutar a noite, como um pirilampo, um vaga-lume que espera já o instante certo para emitir a rápida chama e vai. 
Talvez isso. Experimento. Nas mais variadas línguas.