O 'não' dos irlandeses tirou-lhes completamente a máscara - depois da França, dos Países Baixos e da recusa das restantes lideranças em exporem o Tratado de Lisboa a uma consulta popular já quase não faltava nada para se mostrar: a governança europeia estava de tanga, um pedacinho de pano muito estreito e puído escondia as últimas 'vergonhas'.
A democracia, soi-disant, reduz-se cada vez mais à liberdade de falar. Como avisaram muitos, este pequeno lapso de liberdade e auscultação da opinião dos povos estava a acabar. E tornou-se evidente que já terminou. O povo disse 'não', a maioria de uma nação disse 'não'. Isso implica legalmente o fim do Tratado, mas a elite diz que o Tratado não acabou e o povo não sabe que vai dizer que sim. Caso não haja contorno possível (adendas, anexos, etc.), para fazer com que um 'não' seja um 'sim', faz-se outro referendo, e outro, e outro, até se dizer que sim, como acontece com todas as matérias em que as elites políticas da partidocracia se empenham para um 'sim'. É o caso do aborto, do divórcio, da regionalização (há-de voltar), etc. - e independentemente de concordarmos ou não com o princípio que assiste à promoção dessas medidas legislativas. O que se torna perigoso não é concordarmos nem discordarmos, isso é a vitalidade da democracia que exige; não é estarmos contra a maioria, porque os homens livres decidem sozinhos; o que está mal, o que se tornou fatal, foi a falsificação de um procedimento de consulta popular, falsificação à partida. Depois do 'sim' ninguém mais falará em consultas populares sobre o assunto. O povo só é chamado para legitimar a elite - a elite ineficaz para controlar a inflação, o desemprego, a fuga de empresas e capitais, os abusos das gasolineiras, a emigração ilegal promovida a partir de dentro, os ataques de ditadores sem qualificação para serem sequer homens livres. O que se quer é um sim, tendo-o, é um sim até à eternidade. Não o tendo, força-se o povo a dá-lo. Nenhuma geração mais poderá negar-se ao que a anterior acabou por aceitar (pelos vistos, contra vontade).
Quando a vontade do povo é respeitada, não é não. Não se vai logo dizer que não senhor, disseram não mas não mudamos nada, enganamo-los, damos uma volta ao texto e ficamos como queremos. Lembro-me das críticas e ironias sobre ditadores e governadores que dizem, no 3.º mundo, que se ocorrer isto ou aquilo eu demito-me - e não se demitem. Mas a elite europeia não está precisamente a fazer isso? Eu continuo a achar os países europeus preferíveis ao Zimbabwe, à Venezuela, à Bolívia, ao Lukachenko e outros esbirros de esquerda e direita e, sobretudo, de si próprios. Mas já não é pela democracia. É só mesmo pela liberdade de falar e pela comodidade com que se vive na Europa - ainda hoje. A democracia acabou na Europa e a pouca-vergonha das elites políticas europeias perante o 'não' da Irlanda tirou as últimas ilusões a quem as tivesse ainda. Isso morreu. Agora vivemos numa orquestra de gralhas onde a vontade ou a consciência não convém que determinem qualquer palavra. Faz-se o mesmo com as greves (não se dá ouvidos, intimida-se subtilmente, ameaça-se com a justiça, o desemprego, etc.).
Mas o que é que se podia esperar de uma democracia partidocrática e relativista? Tarde ou cedo cairia nisto e ninguém teria argumentos - desde que a aceitasse - para negar isto.
Sendo assim, com que autoridade moral (é mesmo um problema de moral) pode a Europa lutar pela democracia no mundo? Com que autoridade moral podem os liberais assumir-se contra o dirigismo de esquerda ou de direita? Com que autoridade a esquerda poderá continuar a falar em nome do povo? Com que autoridade a direita nos falará na moral e no respeito pelos valores de uma nação quando não lhe reconhece o direito a negar, a não se federalizar?
Meus senhores, desde 2005 que vos disseram isso claramente: o que está mal é o Tratado de Lisboa e a vossa atitude de desrespeito pela opinião do povo - justamente o princípio em nome do qual a Europa moderna, actual, se construiu. O que está errado são vocês. Desapareçam.